06 Setembro 2022
Antonio Diéguez (Málaga, 1961) é uma avis rara. Diéguez pesquisa o transumanismo desde que era um fenômeno minoritário e foi testemunha de sua transformação em uma ideologia da moda. Também colabora com alguns de seus gurus, como Anders Sandberg, apesar de não hesitar em criticar muitas de suas abordagens.
Hoje, quando cada vez mais vozes clamam por um debate sobre as consequências biológicas e sociais dos avanços tecnológicos, esse pensador, apaixonado por Aristóteles e Einstein, é um dos poucos que se atrevem a enfrentar essa incógnita.
A entrevista é de Carlos Manuel Sánchez, publicada por XL Semanal, 03-09-2022. A tradução é do Cepat.
O transumanismo promove a modificação do ser humano com edição genética, implantes cerebrais... Supõe-se que é para nos melhorar. É isto?
Não está claro. E é preciso ter cuidado porque pode ocorrer mudanças que se tornem irreversíveis. Se editarmos a linha germinal, afetará a nossa descendência.
E pode acontecer que a espécie humana acabe cindida, como Harari profetiza: por um lado, o Homo sapiens e, por outro, uma nova raça de ciborgues?
Harari abraça o discurso transumanista ingenuamente. Na verdade, não sabemos o que fazer com todos esses avanços técnicos. Ortega já o viu chegar nos anos 30 do século passado: a hipertrofia da técnica nos conduzia a uma crise dos desejos.
Não sabemos o que queremos ser?
Não sabemos que fins queremos alcançar com tanta tecnologia. Colocamos todas as nossas esperanças no próprio desenvolvimento tecnológico. No entanto, para a maioria, a tecnologia não oferece resposta às perguntas importantes.
Refere-se a quem somos, para onde vamos...?
É preciso começar por essas, sim. Por exemplo, em que consiste uma vida boa? Mas também há outras novas. Existem características de nossa espécie que devemos preservar? Faz sentido almejar uma eliminação quase completa da vulnerabilidade para nos tornar indivíduos isolados e autossuficientes, com um físico e uma mente prodigiosos, mas ensimesmados?
No que estamos errando?
Consideramos fato que a melhora constante do ser humano acarreta a melhora da sociedade, e não é assim. Podemos viver mais anos e ser mais inteligentes, mas presos em uma sociedade pouco atraente, onde os laços de solidariedade e empatia se perdem. Os hikikomori, no Japão, aqueles jovens trancados no quarto e hiperconectados, são um alerta.
Os algoritmos já decidem muitas vezes por nós...
Não se trata de demonizar a ciência e a técnica. A humanidade não pode mais sobreviver sem elas. Mas é preciso canalizá-las para que não invadam aspectos da vida que não lhes correspondem. É necessária uma reflexão sobre como o progresso técnico está afetando os processos de decisão nas sociedades democráticas. E vice-versa, como as democracias deveriam ter mais influência sobre o que se pesquisa.
Nos Estados Unidos, 60% da pesquisa biomédica é privada. São pagas pelas empresas. E não está claro que seus interesses coincidam com os dos cidadãos. Isso também traz outro perigo: que os cidadãos percebam que essas empresas não explicam o que fazem. Foi o que vimos com a pandemia. Muitos reagiram com posições anticientíficas ou pseudocientíficas.
Um laboratório financiado por Jeff Bezos contratou os maiores especialistas do mundo em longevidade a golpe de um talão [de cheques] ...
Os avanços na extensão da vida são espetaculares e convidam a pensar que existe base para ampliá-la. Outras promessas são muito mais lentas, como transferir a mente para a máquina. Já somos capazes de rejuvenescer camundongos e os ensaios clínicos com humanos começam a dar frutos. Se não andam mais rápidos é porque a velhice não é considerada uma doença, e os ensaios não podem ser justificados a não ser que a finalidade seja a de curar alguma doença específica.
Mas essa não é a imortalidade sobre a qual alguns transumanistas falam...
Certo. Mas se a expectativa de vida for ampliada em algumas décadas, as mudanças sociais serão tremendas. Se nos países desenvolvidos uma grande parte da população ultrapassar os cem anos, a pirâmide demográfica mudará. Não poderemos nos aposentar com a idade de agora, nem com as pensões atuais. Além disso, as pessoas idosas costumam ser mais conservadoras. E podem favorecer partidos que façam políticas mais favoráveis a elas e menos aos jovens.
Parece que você considera um fato que esses medicamentos estarão ao alcance de muitos, mas não parece que serão baratos...
Enquanto for apenas uma questão de medicamentos caros, haverá uma distância de longevidade maior entre as classes sociais, mas já temos isso. Neste momento, o que mais determina a longevidade não é o seu código genético, mas o seu código postal. As diferenças entre bairros de uma mesma cidade podem ser de dez anos. Esta lacuna aumentará com medicamentos caros. No entanto, caso a velhice acabe sendo considerada uma doença, a seguridade social terá que subsidiar esses medicamentos.
A fatura será enorme...
Serão concebidos mecanismos para que seja assumível. Mas no dia em que manipularmos o código genético e tivermos descendentes à la carte, iniciará uma distinção social que se cristalizará em biológica. E isso, sim, pode ser bastante distópico. Porque essas diferenças genéticas levarão a formas de vida e características físicas e mentais muito diferentes.
Seria uma espécie de apartheid genético?
Sim. As classes sociais se tornarão classes biológicas. E as elites serão inamovíveis. Não só terão o dinheiro, mas esses privilegiados serão mais longevos, inteligentes e saudáveis. Nenhuma classe política se atreverá a legislar contra eles. E legislar com coragem é algo que se torna cada vez mais urgente. Certamente, seria necessário começar dividindo as grandes empresas tecnológicas, dado o poder que adquiriram.
Mas o discurso transumanista é de emancipação do ser humano.
É um discurso que cai bem para essas elites. Dizem que é um projeto do qual todos vamos nos beneficiar. É o que se vê no tema ambiental. Eles confiam que o desenvolvimento tecnológico resolverá o abacaxi. Mas não vão à origem do problema. Pretendem que modifiquemos o ser humano para que se adapte melhor a um planeta deteriorado. Ou que reduzamos seu tamanho.
Humanos menores consumirão menos recursos. Já levantaram tal possibilidade. No fundo, é um discurso reacionário. Em vez de mudar nossa forma de produzir e consumir, propõem que mudemos biologicamente para resistir melhor em um mundo tóxico e pobre.
Salve-se quem puder?
As elites já estão fugindo. Dizem ao resto da população: “Fiquem tranquilos, vocês também terão a sua oportunidade”. Enquanto isso, renunciam a criar uma sociedade melhor. E buscam seus próprios refúgios para escaparem.
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“Se manipularmos o código genético, as classes sociais se tornarão biológicas”. Entrevista com Antonio Diéguez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU